quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Um passeio em Lisboa


Hoje tirei o dia e passei a manhã em Lisboa, em busca da Sacoor Brothers da zona do Chiado, que, por ser relativamente recente e ter aberto apenas a meio deste Inverno, teria ainda, teoricamente, umas botas em pele, muito “tia de Cascais” (sim, eu sei, não é nada o meu estilo, mas uma pessoa, um dia, tem de crescer!) que eu adorei e que já não havia nem no Fórum Almada, nem no CascaiShopping, nem no Dolce Vita, nem noutros (vários) centros comerciais onde as procurei, obtendo sempre a mesma resposta: “estão esgotadas e as que se encontram nos manequins já estão reservadas”.
Verdade seja dita, foi difícil encontrar a Sacoor, que, descobri depois, ficava afinal na Rua do Carmo, mas mais difícil foi descobrir as botas: só havia um par e o meu pezinho de Cinderela (!!!) não cabia lá dentro. Por 60€ achei que merecia poder andar sem ter os dedos dos pés encolhidos e apertados e por isso mesmo, não as trouxe.
Encontrei em Lisboa, a mesma Lisboa de sempre. Uma Lisboa que apenas conheci como Lisboa muito depois de, por razões profissionais, ter vindo viver para longe. (Foi porventura esse mesmo distanciamento que me permitiu assimilar a cidade por inteiro.) A mesma calçada portuguesa, a mesma praça do Rossio, os mesmos pombos a beber na fonte, a mesma luz de fim de tarde nas ruas do Chiado, embora não fosse sequer meio-dia, a mesma carrinha dos fados, a mesma Brasileira cheia de gente; as mesmas gentes: vestidas de mil e uma formas diferentes, arriscando com peças ora arrojadas, ora (muito) fora de moda, ou em combinações impossíveis – mas conservando sempre a luz, a cor, a personalidade. E mendigos, muitos mendigos.
Acabámos por ir almoçar ao MacDonalds do Rossio (que, fiquei a saber, foi classificado como “melhor loja de rua”, o que não deixa de ser engraçado, com tanta loja diferente que existe ali pela zona), que não sendo nada tipicamente lisboeta, é lugar de paragem (quase) obrigatória, ou não fosse esse muitas vezes o local de visita, no trajecto para a faculdade. Quem pagou os almoços fui eu e fiquei contente por, por dois almoços, ter pago a módica quantia de 8€ e qualquer coisa. Senti subitamente uma avareza que não me é típica (“já poupei”!) ao fechar a carteira e ao enfiá-la na mala, com a certeza que mais dinheiro não gastaria por hoje.
Eis senão quando, ao descermos as escadas do primeiro piso em direcção à porta de saída, nos deparamos com uma mulher extremamente magra, com uma boina de pelo e um casaco coçado que descaia pelos ombros, com um olhar onde se denotava simultaneamente desespero e um sentido de urgência. A mulher pediu-me: “Por favor, compre-me dois hamburguers. Ainda não comi nada hoje e tenho um filho.” Quase instantaneamente, abri a carteira, para lhe dar 1€ e então ela continuou: “Não, não. Eles não me deixam estar aqui.” Pedi-lhe para esperar e voltei para a fila. Enquanto esperava que me atendessem, olhava de relance para a porta em vidro e via a mulher do lado de fora, a olhar, através desse mesmo vidro, para dentro do restaurante. Como se a mulher, em vez de gente, fosse um cão, que tem de esperar pelo dono à porta. Eu não sei se acreditei que ela tinha um filho, mas definitivamente acreditei que, àquela hora, a mulher ainda não tinha comido nada e sobretudo acredito que qualquer ser humano, em pleno século XXI, não devia mendigar comida ou passar fome.
Pedi o menu como se fosse para mim. (Se estava disposta a gastar 60€ numas botas, como não estava disposta a gastar 10€ a fazer feliz outra pessoa?) Um hambúrguer, para quem não come desde o dia anterior, não dá, nem para a cova de um dente. Pedi-lhe um menu duplo Cheese, que era aquilo que eu teria gostado de comer, se não estivesse de dieta. Pensei na minha sobrinha e lembrei-me que os miúdos adoram o Happy Meal. Não quis dar uma esmola, àquela mulher. Quis-lhe dar uma prenda. Por isso pedi ao empregado que pusesse tudo dentro de um grande saco opaco e dirigi-me para a porta. Os olhos da mulher levantaram-se do chão e num instante encheram-se de luz e felicidade. E de repente, a mulher chorou. Quando lhe entreguei o saco, tive a certeza que a mulher voltou a ter cinco anos e a ser criança outra vez. “Deus lhe pague”, disse-me, com um sorriso desdentado, enquanto me tocava muito ao de leve no braço, como se eu fosse alguma espécie de ser sobre-humano e tocar-me fosse uma espécie de rebeldia a ela interdita. Não quis inculcar-lhe esse sentimento, mas sei que há pequenos gestos que agradecemos a certas pessoas como agradeceríamos a própria vida e nesses casos, é inevitável o “endeusamento” da pessoa que nos ajudou. Sorri-lhe. Enquanto caminhava, fiquei ainda a ver a mulher, pelo canto do olho, a “desembrulhar” a comida. Sorri para mim.
É claro que o meu gajo achou que ela queria era dinheiro para a droga e que por isso não gastava na comida; “Ela podia era ir trabalhar” ou “se ao menos tivesses comprado a Cais, aí sim, acho que até tinhas feito bem” e blá blá blá. Sinceramente, marimbei-me para o que ele estava para ali a dizer. Sim, talvez fosse verdade. Talvez a mulher se drogasse e bebesse e quem sabe, talvez, até se prostituísse. Não me cabe a mim julgá-la e pessoalmente acredito que nenhum erro que se cometa nesta vida é razão suficiente para despir um ser humano da sua dignidade, ao ponto de mendigar comida. Mas pronto, eu compreendo: quem vive e passa por Lisboa todos os dias, não pode olhar da mesma forma, ver com os mesmos olhos, porque aquele quadro é “o pão-nosso de cada dia”, para essas pessoas. “E o homem é um animal de hábitos”, já dizia alguém.
Assim como assim, aquela mulher também me ajudou. Quantas vezes questiono a utilidade do meu ser, a razão da minha vida. Quantas vezes me senti vazia, perdida de mim. (E não serei porventura a única). Quantas vezes?! Ah!, mas hoje não. Hoje tive a certeza que tinha de estar onde estive, a fazer o que fiz.
E quando voltei a Santiago, trouxe Lisboa no coração.

7 comentários:

  1. Em minha defesa, pois não me considero o tipo desprovido de coração que este texto pode aparentar que sou, depois de andar de transportes públicos e por Lisboa com grande frequência, começa-se a reconhecer o "tipo" de mendigos...há várias categorias!E sendo que eu não sou a pessoa mais abastada do planeta costumo ponderar bem sobre a quem vou entregar a minha esmola...

    De qq forma para mim isto só mostra novamente a maravilha de pessoa que és.

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  2. Não pretendo,de modo algum,retirar o mérito que o seu gesto indubitavelmente tem.Mas...eu sou dos que pensam que "é preferível ensinar a pescar do que dar
    o peixe".Há dias,no metro ouvi um invisual tocar num acordeão,mas a TOCAR MESMO, o "Ai Mouraria"como eu já não ouvia há muito.Dei-lhe uma moeda.Não considero esmola,mas sim um contributo para que lhe fosse pago o seu trabalho,uma vez que a viagem se me tornou mais
    agradável.Cumprimentos,PINTADOR.

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  3. Já uma vez fiz isso aqui em Madrid, mas depois também fiquei com a sensação de que dar um hamburguer consola, mas não é a melhor ajuda do mundo. Enfim, mas eu percebo o que queres dizer.

    E afinal de contas vens a Lisboa? Pensava que andavas sempre lá para os lados de Sintra! Agora já não tens mesmo desculpa para não vires visitar a minha casa de Lisboa! :p

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  4. Olá mais uma vez!

    Passei pelo seu blog para me actualizar em relação á sua escrita e ás sua experiências!
    Confesso que inicialmente, quando iniciei a leitura do "passeio em Lisboa" pensei que iria ler uma história acerca da busca de umas botas novas (risos).
    Mas, mais uma vez surpeendeu-me!
    Admiro a sua acção, boa ou não, cabe-lhe a si senti-la como tal. E se bem entendi...sentiu-se realizada (ainda bem).
    As pessoas não têm de julgar as outras para lhes dar de comer ou ajudar de alguma forma.
    Dar um hamburger a um toxicodependente ou alccolico, que nem sabemos se seria o caso e mesmo se fosse, não é muito mais bem empregue o dinheiro, do que 60€ em MAIS umas botas?
    Ao senhor que referiu que é preferivel ensinar a pescar que dar-lhe o peixe, relembro que infelizmente nem todos têm os meios para pescar.
    A quem disse que costuma ponderar a quem entregar a sua esmola...convido-lhe a conhecer a história de algumas pessoas donas desse "rótulo" que lhes coloca com a sua ponderação.

    Para si lovelyritocas...continue a escrever e viver assim!

    E até breve!

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  6. Olá Sr. Anónimo.
    É bastante politicamente correcto e cor-de-rosa encarar as coisas do seu prisma. Não tenho nada contra quem o faz...muito pelo contrario até dou os meus mais sinceros parabéns a quem assim pensa. No entanto, como ando com bastante frequência nos transportes públicos e como não sou tão horrível como possa parecer à primeira vista, ao deparar-me com este tipo de situações, ajudo quando posso. No entanto a quantidade de pessoas que necessitam e/ou pedem ajuda é tão grande que nem a boa vontade de uma "floribela" chegava para todas. É por isso que "selecciono" as pessoas que ajudo. Se o Sr. não se importa de dar a qualquer um que lhe apareça à frente, eu opto por não dar à "ceguinha" que fica a olhar para nós quando passamos por ela ou ao gajo das muletas que corre para apanhar o comboio.
    Vejo frequentemente pessoas invisuais, ou a quem falta um membro, ou com outras dificuldades físicas bastante visíveis a vender a cais, a fazerem musica, a venderem carteiras recicladas ou insectos feitos a partir de folhas...essas são obviamente as pessoas que tenho mais gosto em ajudar!
    É verdade que as pessoas a quem eu coloco o "rótulo" mais pessimista decidindo por tanto não ajudar, podem ter impedimentos ou dificuldades invisíveis a olho nu, no entanto se olharmos para as coisas de um ponto de vista percentual e formos conhecer a história de todas elas, (in)felizmente acredito que terei razão na maioria dos casos. E se pensarmos que essas pessoas que até nem teriam nenhum impedimento para trabalhar ou ganhar a vida de outra forma recebem ajudas que poderiam ir perfeitamente para aqueles que realmente precisam se calhar encarar as coisas da minha perspectiva ganha outro sentido.

    Saudações

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  7. «Não me cabe a mim julgá-la e pessoalmente acredito que nenhum erro que se cometa nesta vida é razão suficiente para despir um ser humano da sua dignidade, ao ponto de mendigar comida.»

    Eu também acredito. Deus lhe pague, como essa senhora lhe disse.


    Não dou dinheiro a crianças (desconfio sempre), prefiro oferecer-lhes o bolo que a sua gula desejar. Dinheiro só dou a idosos, a velhice destituída cota-me o coração.

    Prefiro oferecer uma refeição, e já me aconteceu o mesmo: a pessoa dizer-me que não a deixavam entrar. Tive de insistir com o empregado para que o deixasse sentar. Uma migalha, apenas uma refeição, quando é suposto termos diariamente entre três a cinco.

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